"Meia Sombra"
- angeladiaspt
- 9 de jul. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 3 de ago. de 2024
Sá da Costa Arte | Lisboa | 2024
Natureza naturante
Por José Sousa Machado
“Cala. Nas orlas
do bosque não ouço
as palavras que dizes
humanas; mas ouço
palavras mais novas
que falam gotas e folhas
longínquas. (…)”
(Gabriele D’Annunzio “A Chuva no Pinhal”)
Sob o título enigmático de “Meia sombra”, Ângela Dias expõe, na Sá da Costa, cerca de duas dezenas de linóleo-gravuras sobre papel, de formatos variáveis, e dois desenhos de grandes dimensões em aguarela e guache; um deles também com colagem.
Que palavras “mais novas” são estas que D’Annunzio anuncia no seu poema e qual a sua relação com estas obras de Ângela Dias? O que nos dizem, umas e outras? E que língua falam?
Escutemos a voz do silêncio; o silêncio intemporal que sussurra no cume de uma alta montanha e o repouso revigorante que o contacto continuado com a natureza nos oferece. Ouçamos com disponibilidade interior o murmúrio descontínuo da folhagem luzente dos plátanos agitados pela briza mansa do entardecer; afaguemos a rugosidade áspera e perene dos ciprestes, erguidos como totens cravados sobre a crosta da terra-Mãe; acariciemos os frutos perfumados dos maracujás suspensos numa latada e a rosácea desmaiada das suas flores… inspiremos ainda a paz e a inebriante atmosfera meditativa que a imersão no mundo natural nos devolve generosamente e contemplemos, também, a beleza e sensualidade que tudo, assim, desvela… deixemo-nos, enfim, levar e embalar na ladainha salpicada das gotículas da chuva caindo sobre a folhagem de um jardim, temperando-lhe o solo com o odor penetrante do húmus…
“… Escuta. Chove
das nuvens esparsas.
Chove sobre os tamarindos (…),
chove sobre os pinheiros
escamosos e ásperos.
Chove sobre os mirtos
divinos,
sobre as giestas fulgentes,
sobre o zimbro frondoso
de bagas perfumadas (…) ”
(Ibid)
Ângela Dias conhece bem a fonte que satura de sortilégios o mundo natural e estimula as suas subsequentes coreografias florais, desenhando no ar voltas e contravoltas precisas e surpreendentes em “bebedeiras de azul” (António Gedeão).
A artista reside e trabalha no cimo de um outeiro com um vasto horizonte pela frente e absorveu intuitivamente, intimamente, muitas das formas inesperadas de que a natureza se reveste; a sua essência sensível, a sua “ordem”, as cores, movimento, ritmos e odores; a sua musicalidade também.
A relação íntima que a artista desenvolve activamente com a natureza que a circunda manifesta-se agora na fluidez e liberdade destas gravuras, desenhadas com goivas sobre placas de linóleo. Este trabalho fez aparecer “plantas desconhecidas. (…) Cada desenho é uma viagem sobre o mapa de uma planta” e, no seu conjunto, representam “estações, cor, aroma, movimento e paisagem, (…) com a intenção de lhes dar espaço e tempo para existirem e crescerem abundantemente”, afirma Ângela Dias.
As qualidades, os ritmos específicos e a função que cada planta particular desempenha no sistema oculto e nas determinações causais do mundo natural, os seus atributos, migraram da natureza para o papel rosaspina de marfim, sobre o qual estas gravuras estão impressas… podemos dizer que a artista, em certa medida, absorvendo a ordem da natureza, executa, agora, nestas obras, também, a tarefa de jardineira e a exposição transmuta-se, então, em “laboratório da alma” (Yvette Centeno). Tal como Gustav Meyrink (“O Anjo da janela do Ocidente”), também Ângela Dias pode dizer que “… percebi de súbito, com uma ardente claridade interior, que era eu essa árvore na colina…”.
Sobre os dois desenhos de grande formato, também patentes ao público, nos quais palavras, letras, signos se entrelaçam nas plantas desconhecidas que a artista idealizou, afirma Ângela Dias que estas plantas “pertencem a um jardim literário (…) que podia existir em qualquer jardim público ou privado” pois, parafraseando Heidegger, compete ao homem, durante a sua estadia neste mundo, o pastoreio do Ser que primeiramente se manifesta através da palavra.
“…chove sobre os nossos rostos
bravios, (…)
sobre os frescos pensamentos
que a alma apregoa
como boa nova (…)”
(Ibid)
























